* "O dicionário define 'memória' como uma faculdade de reter conhecimentos ou experiências passadas, e o 'esquecimento', por oposição, como a incapacidade de reter as informações, como um certo "deixar cair fora" do controle ('esquecer' deriva-se do latim 'cadere', que quer dizer 'cair'). Por causa dessa 'controlabilidade', costumamos valorizar mais a rememoração e suas técnicas do que o esquecimento e seus lapsos.
Entretanto, a memória, vista mais de perto, não é só atividade. Não é por acaso que falamos dela como alguém que nos trai, como se fosse uma esposa amada, mas infiel, sobre a qual lamentamos não ter tanto poder. Da mesma maneira que nossa capacidade de controle sobre a memória é limitada, talvez haja inversamente a possibilidade de que o esquecer possa ser ativo.
Infelizmente não temos notícia ainda do desenvolvimento de nenhuma 'amnemo-técnica', quer dizer, uma arte da amnésia, nem como uma forma de aprender a bem viver, nem como uma técnica de auxílio à ciência e ao conhecimento. Uma agenda do esquecimento seria um empreendimento paradoxal, pois o esquecimento não permite listas, planos ou cronogramas. Por que então querer esquecer?
A vantagem de olhar para o passado é a oportunidade de compreender e experimentar esse passado como 'nosso'. Em geral tendemos a olhar para a história como um processo onde não temos nenhuma participação. É a mesma coisa que acontece quando dizemos que 'estamos presos em um engarrafamento'. Essa frase tão banal e cotidiana trata o engarrafamento como um processo independente da nossa vontade, como uma pedra que se instala no meio de nosso caminho para casa. Do ponto de vista da filosofia seria muito mais coerente ligar para a família e dizer que vamos chegar atrasados no jantar porque estamos muito ocupados produzindo um engarrafamento junto com a 'maior galera'.
Olhar para o passado ajuda a lembrar que somos também a nossa história. Isso só é ruim quando é feito de forma excessiva. É preciso desconfiar quando a nostalgia vira moda. Supervalorizar a memória pode, às vezes, significar falta de perspectivas para o futuro. Para que o futuro se realize é preciso às vezes esquecer o passado. O esquecimento é condição de possibilidade de tudo que é grande, saudável e nobre no homem.
Nas suas Considerações Extemporâneas (1874), Nietzsche convida-nos a imaginar um homem tomado de uma paixão violenta por uma mulher ou por uma grande idéia. Como se modifica o seu mundo! Não apenas todas as suas avaliações se alteram, como a própria capacidade de valorar fica temporariamente suspensa: "Torna-se ingrato contra o passado, cego para os perigos, surdo às advertências, um pequeno redemoinho vivo em um mar sereno de noite e esquecimento".
Para Nietzsche, este estado de esquecimento sereno da história produz não apenas ações injustas, mas muito mais vezes as corretas: 'Nenhum artista teria realizado um quadro, nenhum general teria ganhado uma batalha, nenhum povo teria conquistado sua liberdade sem que estivessem antes desejado isso de um modo não-histórico'.
Saber selecionar o que deve ser esquecido para poder se concentrar no que pode ser realizado, eis o segredo das grandes ações humanas. Não é uma tarefa fácil, os únicos mestres de que dispomos, segundo Niezsche, são as crianças e os animais, seres capazes de brincar ' entre as cercas do passado e do futuro, em uma serena cegueira'.
Nessa época pode estar sofrendo de um excesso de sentido histórico, de um exercício desmedido da memória. Um homem que nunca esquecesse ficaria doente, enfraquecido, desesperado de morte. Esquecer não quer dizer simplesmente apagar da mente e da vista, mas ter a força de recriar a memória, de reinventá-la, libertando-se das interpretações oficiais e canônicas e partindo para a criação. A memória pode até ajudar a conservar a vida, mas só o esquecimento pode contribuir para a sua regeneração".
*Este artigo foi publicado na revista Bravo nº105, pelo doutor em filosofia Charles Feitosa.